Uma Certa “Doença”
Jorge Fernandes
No Parque, desenvolvemos uma certa “doença”, que era achar nossa pertença, os carros que todos os dias estacionavam no sentido descendente, e em noite de casa cheia na ascendente durante as mais ou menos três horas, que era o que levava a soirée no Cinema Tivoli.
Que ninguém me acuse de nada, pois não fui eu que pari a doença, quanto muito, fui mais uma das vítimas e por contágio.
Eu até penso que o surgimento dessa “doença”, foi resultado de nos terem imposto a sua presença.
Afinal em que bairro, os seus habitantes cresceram a levaram com a invasão da sua privacidade, dia após dia, ano após ano, com um corrupio de viaturas a chegar, estacionar, e sem nos pedirem licença durante aquelas três horas? Nenhum. Penso pois, que essas horas diárias, o longo convívio a que fomos forçados, será a raiz do problema.
Posto isto, encostarmo-nos, sentarmo-nos em cima deles, começou por ser algo normal, mesmo natural, e de tal forma o achávamos, que o seu proprietário por vezes quando chegava no fim do filme, tinha que tossir, para se fazer notar, e havia os outros, aqueles que não se assustavam com os miúdos cabeludos que povoavam as redondezas, e se atreviam a mandar umas bocas, tipo; Ouve lá ó gedelhudo, pensas que isso é o sofá lá de casa? Bem…alguns deles, não se deram lá muito bem com essas bocas. Mas isso são outras estórias.
Mas voltemos à intimidade que se foi desenvolvendo, entre nós e as tais de viaturas invasoras de bairros alheios, que degenerou na tal de “doença”. É que nós fomos crescendo meus amigos, e então começamos já a não contentar-nos em apenas arrancar das viaturas, os autocolantes da Bonzão, ou aqueles trevos verdes de 4 folhas, e outras publicidades da época, que acabávamos por colar nas janelas de vidro do quarto, ou mesmo em algumas capas de livro.
Começamos a olhar para as viaturas invasoras, mas simultaneamente íntimas, como algo parecido com as bombas de combustível da Shell, ou da Sacor, por exemplo.
É. Afinal depois dos tempos de andarmos de bicicleta…o que vem a seguir…as motas, não é assim? Depois chegam os carros. Foi como os triciclos, que se viram relegados pelas bicicletas. É ordem natural das coisas. E as motos andam a gasolina, e a gasolina custa dinheiro. E nós tínhamos tantas “bombas de gasolina” por noite à nossa disposição, que casava com a falta de Money, Kumbu, Jimbuku, no bolso.
Elas vinham ter connosco, nem as precisávamos de chamar. À hora certa, lá apareciam elas. Penso que havia mesmo, quem andasse um pouco menos à tarde, para esperar que os postos de combustível chegassem ao bairro para atestar o depósito.
O processo era simples, uma pequena mangueira, um bidonzito, quando não era directo do carro invasor para a mota, e abrir qualquer depósito das viaturas, foi coisa que se aprendeu. Até porque não faltava matéria-prima para praticar. Ficamos craques naturalmente. Tão craques que parecia que até só de olhar, acertávamos nos que estavam com o tanque cheio, e aqueles que estavam quase de tanga…tal como nós.
Vocês podem não acreditar…mas nós éramos uns joves generosos, e uma vez até abastecemos uma das viaturas invasoras, pois alguém chegou à conclusão, que o pobre do dono, não chegava a casa com a gasolina que tinha.
Foi um acto de solidariedade, para com alguém que escolheu entre ir ver um filme ao nosso Tivoli, ou abastecer a viatura, ou então até a ia abastecer, mas se calhar já não podia depois do cinema ir comer um prego no pão e xupar uma Nocal ao Baleizão, por falta de dinheiro.
Assim, viu o filme, e deve ter pensado depois que tinha havido um milagre naquele Parque, pois olhou para o indicador do combustível, que tinha a certeza que já estava mais que na reserva, e já se movia só com o vapor, e agora ali estava ele bem cheio. Coisas que aconteciam naquele Parque Mágico.
Sem comentários:
Enviar um comentário