domingo, 11 de março de 2012

O Da Gama, o Tormentoso e ... ...um Sambista, claro! (Capítulo Primeiro)

O Sambista Vitorino Tchamutete, ganhara a alcunha de "Salmonete", por força da habilidade com que na Ponte do Carvão, o local preferido para as suas pescarias, capturava os peixes do mesmo nome. Começara, como quase todos os Sambistas, ali pelas bandas da Coreia/Bairro de Sta. Bárbara, por apanhar uns roncadores e umas ferreirinhas e, quando dominava já os rudimentos da arte, começou a fazer-se a águas mais profunda, alugando uma canoa que ximbicava em direcção a certos "fundões", verdadeiros viveiros de garoupinhas, daquelas boas para grelhar e comer com molho de manteiga que, diga-se em abono da verdade, foi também invento da sua lavra, mas cujos créditos , nunca lhe foram atribuídos.

Era na Ponte do Carvão que se encontrava o Salmonete, quando a esquadra do Gama adentrou a baía, sobre a qual se debruça a cidade de Luanda, para lançar ferro, dar algum descanso aos marujos e proceder ao necessário reabastecimento. Manteve-se calmo e sossegado, não embarcando no alarido e euforia que grassou na populaça. Afinal, nem sequer tinha razões para isso. Vitorino era homem multifacetado, embora não fosse de se gabar. Sabia de molho de manteiga, de ventos e marés, era verdadeiro especialista encartado na leitura de barómetros e, reconhecido mestre em correntes frias e quentes, nomeadamente na influência destas no comportamento de bujarronas e e outros panos, sem esquecer os cestos da gávea e patilhões.

Essa atitude de "num tou nem aí", atiçou a curiosidade do Da Gama que, de imediato, ordenou que preparassem a "chata de desembarque". Referem alguns historiadores que o Gama de marinheiro tinha pouco, tratando-se antes de um diplomata negociador, mandatado por El-Rei para negócios de pimentas e canelas. Uóréva! Como se diz em estrangeiro. Certo é que o Da Gama, desembarcou com os seus melhores "veludos", espécie de "naftalinada" farda de gala, reluzente de condecorações e comendas, golas de folhos e competente chapéu a condizer.

Salmonete, "mordeu-lhe" a aproximação, toda salamaleques e ademanes, como era usança nas Cortes da Europa. O Gama com voz educada e fina, apresentou-se: -"Ora muito boas tardes meu jovem amigo, eu sou Vasco da Gama, Almirante desta frota que se dirige para as Indias. Dar-me-á o prezado amigo, a subida honra de me permitir dois dedos de conversa? Vitorino Salmonete, mirou-lhe o porte e a encadernação, e ... ... ... não se conteve: - "Oh meu, pôrra! Engalanado dessa maneira, até pensei que ias p'ró Carnaval do Rio e que tivesses falhado a "volta de mar", vindo parar ao lugar errado, ou que uma qualquer "ventosa", te tivesse afastado do rumo! E limpando aos calções, a mão molhada e algo suja de escamas de salmonete e sangue de mabanga que usava para isco, estendeu a dita ao Gama dizendo: - "Pareces um kota fixe, meu! E também gostei dos teus "pancos" de salto alto e "alta" fivela. No Rio, passavas "fáciu, fáciu" por Mestre Sala da Portela". Juro mesmo que pensei que ias p'rá gandaia, meu!

Baralhou-se o Da Gama. Que conversaa era aquela da "volta de mar", da "ventosa" a transtornar-lhe o rumo, mais o tal de Rio  e o Carnaval? – "Poderá o meu jovem amigo explícitar o que lhe vai na mente?" Salmonete, soltou sonora gargalhada, fez um "muxôxo" e abanando a cabeça, falou: - " Oh Da Gama! Eh pá, não me digas que nunca te falaram do Pedro de Belmonte? Nem das Terras de Vera Cruz? Porto Seguro? Nada? – "Infelizmente, a minha resposta é negativa", lamentou-se o Gama. Saiba Vocência ... ... – "Arto aí, oh Demirante! A única Vicência que conheço, vive no Marçal e caté procaso, tamos combinado de ir no merengue do Sô Braguês, em data a marcar portunamente. Começa mazé a me tratar por Salmonete que é melhor".

Fez sinal a um kandengue para que se aproximasse e segredou ao Gama: - "Sabes que nestes dias de calor a língua seca e fica "im-po-ssí-ver" da gente falar. Dá aí umas "massas" a esse kandengue, p'ra ele ir buscar umas "Cucas", senão ... ... ... vais ficar desinformado, meu"!

Desembolsou o Da Gama o "cobre" suficiente para meia dúzia de "granadas" e para a "chuinga" do kandengue, que arrancou em corrida para a loja do Marreco. Em boa verdade, deveria ter escrito Casa Pombo, de Albertino Pombo & Companhia Limitada. Acontece que Albertino Pombo, era dono e legítimo proprietário de protuberante "marreca", daquelas que requerem colchão com cova para acolher a dita, no caso do seu possuidor decidir dormir em decúbito dorsal, e por vias de tal "excesso" ficara irremediávelmente conhecido por Marreco. Nada o irritava mais do que lhe chamarem Marreco na presença da D. Pureza Pombo, amantíssima esposa e sócia no negócio. Pureza no sêcos e Marreco, digo, Pombo nos molhados. Até se conta que certo sábado, dois clientes já meio entrados na pinga, pediam insistentemente: -"Oh Marreco, dá aí mais dois copos!" Cansado da abusadora insistência, o Marreco refilou: -"Já falei muitas vezes que o meu nome não é Marreco!" Um dos clientes pretendeu ser esclarecido e perguntou: "Oh Marreco!Então se o teu nome não é Marreco, qual é o teu nome, oh Marreco?" Zangado, mesmo muito zangado, o Marreco respondeu: - "O meu nome é Pombo!" – "Pôrra, Marreco! Nunca vi um pombo com o papo nas costas!"

domingo, 30 de outubro de 2011

3 Sambistas no BO - Jorge Silvano

Três Sambistas no B.O.

Numa noite de sábado de cacimbo luandense, estavam sentados na esplanada do "Cardoso" bebendo uns finos, três Sambistas. Sem poderem alargar-se muito, diga-se em abono da verdade, devido a auto-imposto "plano temporário de contenção orçamental". Era normal acontecer, os meses serem mais compridos do que os proventos, ditando com alguma frequência estas restrições. Estavamos práticamente "tesos". Esta é a verdade, nua e crua. Tão tesinhos como um pargo com quinze dias de frigorífico, três "gerações" Sambistas partilhavam as agruras do "capital ausente". Irmanados na penúria, o "mais velho" Branco, com idade para ser meu pai, Helder Simões (Dédé) e eu próprio, "contador" do sucedido e sete anos mais novo que o Dédé. Como se pode verificar, a tradição Sambista de convivio e partilha "intergeracional" é coisa antiga que felizmente, continua a existir. A conversa decorria lenta e mole, o tempo custava a passar e nem o fino que se bebia, era suposto "durar" tanto tempo. Foi nessa altura que um carro desconhecido transportando dois ocupantes, parou junto ao passeio, mesmo em frente a nós. Eram conhecidos do Dédé e fizeram-nos um convite irrecusável. Decorria uma festa (daquelas famosas farras dos sábados luandenses) numa casa particular e estavam com um problema, para cuja resolução "contavam com a nossa ajuda e disponibilidade". Tratava-se de nos convidarem para a tal farra, em virtude de sermos uns "gajos porreiros" e não haver na tal farra, homens em número suficiente para as "baronas" disponíveis. "Se vocês quiserem dar-se ao "incómodo", serão muito bem vindos", disseram. Rápidamente se tomou a decisão de "ajudar quem precisava". Ser solidário, foi e sempre será, característica dos Sambistas. A casa em questão, localizava-se no Bairro Operário, conhecido bairro que abrigava não só "damas das casas da luz vermelha", mas também, muitas famílias "de vida difícil", sérias e honestas famílias de trabalhadores. Fomos recebidos como autênticos princípes. Casa de boa gente originária de Cabo Verde, comida farta e de altíssima qualidade, muita e garbosa cerveja, devidamente gelada em barris cheios de gelo picado, música a condizer e as simpáticas donzelas, disputando os novos convidados para dançar. Era o céu! Coisa fina! Muito fina mesmo! Decorria a farra com grande harmonia e animação, quando por essas quatro da madrugada, estalou a "maka". Dançava-se uma daquelas músicas de "constituir família" e um cidadão dançarino, brindava o público com excelente "performance", puxando a "barona" contra si, assim a modos que dois sinais de abrir parentesis, bem coladinhos. Encontrava-se porém na pista de dança, o "mais velho" Branco com o "depósito bem atestado" e que ao ver a bunda do compadre dançarino, passar ao lado dele assim "espichada", não teve dúvidas e "passou-lhe a mão no côco". Não sei porque artes, em menos de um "fósforo", estávamos os três encostados á parede, devidamente postos em sentido, por força da ameaça que representava a ponta da navalha, demasiadamente próxima, para o meu gosto peculiar, do "apparatus gargantorium" de cada um. Com toda a gente em desalmada gritaria, fomos salvos pelos cidadãos que nos tinham convidado. Segundo eles, o ilustre "oftalmologista Dr. Branco", só teria passado a "luva no matako" do dono da casa (nosso anfitrião, portanto), porque a cerveja que por essa hora ele já teria "derrotado", lhe provocara uma certa "baralhação", levando-o a confundir o respeitável "pacote" de "nhô Toninho" com o da "madame" com quem tinha "namorado" a noite inteira. Demorou algum tempo para o homem se convencer da veracidade dos argumentos apresentados pela defesa, mas finalmente "acalmou" quando o "Dr. Branco", corroborou a argumentação dos "advogados", apresentando as suas desculpas e afirmando não ter havido a menor intenção de desrespeitar o dono da casa, muito menos a digníssima consorte e, menos ainda a residência do casal, onde tão fidalgamente tinha sido recebido. Quando finalmente, as desculpas foram aceites, regressaram as "naifas" aos bolsos respectivos e "nhô Toninho" dirigiu-se ao povo. – "Meus amigos, aqui não aconteceu nada! A farra vai continuar e não se fala mais nisso"! E de facto, continuou. Animada e sem problemas, até cerca das oito da manhã. A essa hora foi servido o "matabicho" e despedimo-nos em seguida, recusando tão polidamente quanto possível, o convite para ficar para o almoço. Regressados ao "Cardoso" para o cafézinho da praxe, seguimos depois para as respectivas residências, a fim de dar ao corpo o repouso diurno que os "pássaros da noite", não só necessitam, como sem dúvida ... ...merecem.

Nota final: Ao contar este "ocorrido", pretendi antes de tudo homenagear póstumamente dois verdadeiros Sambistas e meus particulares Amigos. Descansai em Paz, Sambistas Branco e Dédé.       A "memória" Sambista não vos esquecerá.

sábado, 29 de outubro de 2011

O "Ataque" da bandeja | Jorge Silvano

O "Ataque" da bandeja
Jorge Silvano


Não que eu tenha assistido pessoalmente a este "causo". Nem poderia. Ao tempo, era ainda umacriança e não frequentava, como é lógico, o local do "crime". Trata-se portanto, de tentar relatar uma história que chegou ao meu conhecimento "pela tradição oral" . Talvez outras pessoas do grupo se recordem de a ter ouvido também.
Nos idos de 1961, sentados à mesa da esquina junto ao passeio, da esplanada do "Cardoso", um grupo de alguns (já nessa altura) "veteranos" Sambistas, comentava os acontecimentos recentes que traziam Luanda alvoroçada. Eram os únicos clientes na esplanada e enquanto bebiam uns finos, iam botando "faladura". Pode dizer-se que a esplanada seria o local mais iluminado das redondezas. Do outro lado da Rua da Samba "era mato", não havendo outra construção desde a Rua da Samba até á Avenida de Lisboa, a não ser a já existente "Casa dos Malucos". Embora protegidos pelos arbustos das floreiras, com tudo escuro em redor e eles em local iluminado, fácil será concluir como estavam expostos a qualquer eventual "ataque".
Entre duas "goladas" num fino, dizia um: "Se os gajos vierem ... ... faço assim e assado". Para logo outro afirmar "e eu faço frito e cozido" etc., etc.
Era empregado de mesa o Sr. Fernando, estrábico "de pai e mãe", de quem se dizia (e eu lembro-me muito bem dele) que "olhava contra o governo", exactamente por causa desse problema. Não tendo outros clientes, dado o adiantado da hora e também devido ao "clima", o ensonado Sr. Fernando, aguardava de pé junto à mesa, as ordens necessárias para remuniciar e providenciar o requerido alívio, á secura daquelas gargantas. Tão sonolento estava o homem, que em dado momento "se passou" mesmo. Foi apenas a fracção de segundo necessária para que a bandeja lhe escorregasse das mãos, aterrando no pavimento de cimento. Por estranho que possa parecer, aterrou "de chapa", provocando um som que alguns dos presentes confundiram com o "estampido" de um tiro.
Desapareceram os heróis, "voando" em todas as direcções, procurando o abrigo que os pusesse a salvo do "ataque", enquanto os que se tinham apercebido do sucedido, tentavam consolar o pobre e desolado Fernando que se explicava e pedia desculpa pela "ocorrência".
Como nada mais acontecia, foram aos poucos regressando os "pássaros" e retomando  lugar à mesa, quando verificaram que o "mais valente", não tinha regressado. "Se calhar foi p'ra casa", disseram alguns. "Não", disse o Sr. Fernando, "ele foi lá p'ra dentro. Eu vi!"
Procurando o "desaparecido em combate", partiu para o interior do café uma equipa de " busca e salvamento", tendo descoberto o nosso "herói" trancado na casa de banho. Logo o informaram que o perigo "tinha passado". Saiu o "guerreiro" do abrigo e ouviu as explicações sobre o "caso". Indignou-se o homem. Encarando o Sr. Fernando, vociferou: "Pôrra Fernando! Essa merda não se faz! Tens que ter mais cuidado, pá! Nós estamos em guerra, entendes? EM GUERRA, PÔRRA!!

No "Cardoso", onde quase tudo acontecia | Jorge Silvano

No "Cardoso", onde quase tudo acontecia.
Jorge Silvano
Embora o nome oficial fosse Cervejaria Brasilia, para mim será sempre "O Cardoso". Ocupava a esquina da Rua da Samba com a Rua Francisco Sotto Mayor, no Bairro da Samba, Cidade de S. Paulo da Assunção de Luanda, capital de Angola.
Era ali que nos juntávamos para o cafézinho, jovens adolescentes, "mais velhos" e honrados pais de família, em salutar convivência e onde ... ... quase tudo acontecia.
A exemplo do que era norma em lugares semelhantes, no Cardoso, os empregados pagavam ao balcão o que os clientes haviam solicitado, sendo depois ressarcidos desse investimento, quando os fregueses pagavam as despesas respectivas.
Para além dos esquecimentos e do "pendura aí" que eu pago logo, aconteciam também as golpadas.
O Mário, empregado de mesa, aproximou-se certa tarde, queixando-se amargamente:
-Um café aqui, um fino ali ... ... ao fim do dia, é uma data de "massa".
O Sr. Fernandes (técnico de máquinas de escrever), logo lhe disse: - Pede-lhes o dinheiro adiantado!
- Não posso, senhor Fernandes. Isso, não posso fazer!
- Nesse caso, tens que arranjar outro sistema. Olha! Devias ter um "sistema de ventosa".
- E que raio de sistema vem a ser esse? Perguntou o Mário.
- Muito simples, pá! Vamos imaginar que um "gajo" qualquer te pede um café. Tu vais lá dentro, trazes uma chávena vazia, mais o respectivo "aparelho".
- Mas qual aparelho? Espantou-se o Mário.
- Oh pá! Tem que ser assim uma espécie do "aparelho dos clistéres",mas com ventosa. Deixa-me acabar que já percebes! Ora bem. Pões a chávena em frente ao freguês e abres a torneirinha. Enches a chávena e ... ... agora muito cuidadinho! Antes do "gajo" lá por os beiços, pedes logo a "massa"! Se o "animal" pagar, fica o caso arrumado.
- E se não pagar?
- Aí é que entra a ventosa! Se começar com "nhã,nhã,nhã", "pago depois" ou "outra trampa" qualquer, tu ligas o "sistema de ventosa" e "chupas" o café outra vez p'ró depósito. Percebes?
Um café ... ... e tu FZZZ! Pago depois ... ... e tu SCHLUP!
Não pode falhar! Que grande ideia que eu tive! Tás a ver, oh Mário! Café ... ... FZZZ, pago depois ... ... SCHLUP!
Que a terra lhe seja leve, "Velho Fernandes".
Vidas Sambistas